Desde os tempos mais remotos da juventude questionava os ensinamentos religiosos que o apresentavam. Era de família católica e achava, nas primeiras vezes, que ir à igreja era uma brincadeira conjunta de “morto-vivo”, mas o tempo o esclareceria, a partir do tédio e dos compassos medidos pelos números do folheto, que não era exatamente assim. Na realidade, ficou mais confuso ainda, pois se viu imerso em uma brincadeira preenchida de disciplina, com tempos marcados para sentar e levantar, e neste momento teve certa descrença no mundo, pois estavam padronizando até as brincadeiras de criança. Havia lugar certo para brincar; que fosse à casa de um “Senhor” escrito sempre com letra maiúscula e juízes santos de olhos tristes acompanhando quem estava mais atento.
Ali não podia sair no meio, mesmo que fosse o último a se sentar ou a se levantar. De repente a descrença transformou-se em crença, ou esperança como mais gostava de dizer, pois podia brincar infinitamente, mesmo que se descuidasse se olvidando de reagir a um comando mais rápido. Por outro lado cansava-se com mais frequência, o que fazia voltar a dor da disciplina. Distraía-se torturando percevejos eventuais que pousavam nos bancos e com vertigens alucinantes ao mirar o fundo dos arcos ogivais, enquanto ouvia eventuais canções à capela que o faziam lembrar do sítio de seu avô em Barra Mansa.
Saía sempre mais confuso e assim passaram os anos. Das aulas de catecismo tirava mais perguntas e crescia atormentado pelas dúvidas. Preferia quando não precisava entender nada. Da primeira comunhão tirou um hábito sem gosto, que o fazia pela eventual ventura de provar o vinho do padre. Sugeriu a seu pai que lesse uma revistinha em quadrinhos que ganhara de sua tia toda vez que fossem à missa. O resultado foi que, de aniversário, ao invés de uma bola ou o carrinho que queria, ganhara uma edição antiga de “A Bíblia para crianças”. “Meu filho, você precisa acreditar em algo. ‘A fé desentope as artérias.’”
Sabia que seu coração era mais saudável saindo para brincar aos domingos do que preso no templo do tão prepotente e vaidoso “Nosso Senhor”. Perguntava à irmã do sentido de rezar antes do almoço e do jantar, mais como crítica do que vontade de sanar a dúvida.
– Olha, o que eu peço é assim: “Senhor, abençoe este alimento que estou recebendo de vós, que nenhum alimento falte nesta casa, que papai e mamãe consigam sustentar essa família trazendo comida e que a gente seja muito feliz, amém”.
De fato, a juventude da irmã em sua pureza havia desmedido algo no interior do irmão. Deu uma chance e passou a repetir as exatas palavras que a irmã proferia mentalmente antes de comer. “Senhor, abençoe este alimento que estou recebendo de vós, que nenhum alimento falte nesta casa, que papai e mamãe consigam sustentar essa família trazendo comida e que a gente seja muito feliz, amém” passou a ser um costume que cultivara e nunca se perguntara o porquê. O fazia antes de almoçar na casa das avós, de amigos, em restaurantes, sempre mentalmente, e arriscava um “pai, filho e espírito santo” tímido no fim. Não mudava as palavras, e começou a questionar algumas coisas. Como seus pais trariam felicidade e comida à casa dos amigos, dos avós? Como trariam bênçãos aos restaurantes, shopping centers, galerias e cafés da cidade? Por alguns momentos criou a imagem engraçada dos pais como super-heróis do cotidiano, bons samaritanos da humanidade em seus trenós multiplicadores de peixes e pães, fornecedores de bens perecíveis e não perecíveis a recintos trabalhadores da culinária.
Parou de questionar e deixou por assim mesmo. Parara de frequentar a igreja, experimentara centros espíritas, visitava debates de ateus, marcava presença em encontros budistas, passeava por igrejas protestantes, e se via em plenitude de dúvidas acreditando em tudo, acreditando parcialmente, acreditando em uma coisa e outra, e acreditando em nada. Passou a analisar a necessidade de tantos em afirmarem a certeza e legitimidade de suas crenças, fossem no tudo ou nada, fosse no pó pós vida ou na plenitude pós morte, e se viu tão afogado de dúvidas que as tomava como única coisa certa perante a incerteza de tudo.
Parou de questionar e deixou por assim mesmo. Parou de frequentar as brincadeiras coletivas de morto-vivo de sua infância. Parou com os estudos e o interesse voraz pela graça de cada religião. Mas não parou de evocar a força estranha que abençoava os alimentos de sua casa e de onde fosse, e dava de brinde o “muito feliz” que pedia de seus pais. “Senhor, abençoe este alimento que estou recebendo de vós, que nenhum alimento falte nesta casa, que papai e mamãe consigam sustentar essa família trazendo comida e que a gente seja muito feliz, amém”, e permanecia a imagem de sua irmã mais nova, com didática e cuidado impecáveis, muitos anos antes, repetindo palavra por palavra para que ele as memorizasse e fizesse da mesma forma. Com esta incerteza, não se preocupou.
E foi assim até os tempos mais remotos de sua vida, quando no leito de morte não podia mais responder pelo “vivo” evocado na brincadeira. De repente, a brincadeira respondia por seu monólogo pálido e infindo da horizontal que não permitia o ficar de pé. Entretanto, já depositara em seus embriões crescidos a serenidade duvidosa da comida abençoada e da alegria que poderia proporcionar para sempre, palavra por palavra, fosse pó ao vento, ser novo pelos prados e grandes cidades ou alma que dormia. “Senhor, abençoe este alimento que estou recebendo de vós, que nenhum alimento falte nesta casa, que papai e mamãe consigam sustentar essa família trazendo comida e que a gente seja muito feliz, amém”.
Perdeu a brincadeira e aceitou as dúvidas, mas enquanto estava de pé, viveu com a certeza da felicidade e da comida abençoada. E que não faltava, logicamente, pois papai e mamãe eram isentos de dúvida.