Canção do morto-vivo

Desde os tempos mais remotos da juventude questionava os ensinamentos religiosos que o apresentavam. Era de família católica e achava, nas primeiras vezes, que ir à igreja era uma brincadeira conjunta de “morto-vivo”, mas o tempo o esclareceria, a partir do tédio e dos compassos medidos pelos números do folheto, que não era exatamente assim. Na realidade, ficou mais confuso ainda, pois se viu imerso em uma brincadeira preenchida de disciplina, com tempos marcados para sentar e levantar, e neste momento teve certa descrença no mundo, pois estavam padronizando até as brincadeiras de criança. Havia lugar certo para brincar; que fosse à casa de um “Senhor” escrito sempre com letra maiúscula e juízes santos de olhos tristes acompanhando quem estava mais atento.

Ali não podia sair no meio, mesmo que fosse o último a se sentar ou a se levantar. De repente a descrença transformou-se em crença, ou esperança como mais gostava de dizer, pois podia brincar infinitamente, mesmo que se descuidasse se olvidando de reagir a um comando mais rápido. Por outro lado cansava-se com mais frequência, o que fazia voltar a dor da disciplina. Distraía-se torturando percevejos eventuais que pousavam nos bancos e com vertigens alucinantes ao mirar o fundo dos arcos ogivais, enquanto ouvia eventuais canções à capela que o faziam lembrar do sítio de seu avô em Barra Mansa.

Saía sempre mais confuso e assim passaram os anos. Das aulas de catecismo tirava mais perguntas e crescia atormentado pelas dúvidas. Preferia quando não precisava entender nada. Da primeira comunhão tirou um hábito sem gosto, que o fazia pela eventual ventura de provar o vinho do padre. Sugeriu a seu pai que lesse uma revistinha em quadrinhos que ganhara de sua tia toda vez que fossem à missa. O resultado foi que, de aniversário, ao invés de uma bola ou o carrinho que queria, ganhara uma edição antiga de “A Bíblia para crianças”. “Meu filho, você precisa acreditar em algo. ‘A fé desentope as artérias.’”

Sabia que seu coração era mais saudável saindo para brincar aos domingos do que preso no templo do tão prepotente e vaidoso “Nosso Senhor”. Perguntava à irmã do sentido de rezar antes do almoço e do jantar, mais como crítica do que vontade de sanar a dúvida.
– Olha, o que eu peço é assim: “Senhor, abençoe este alimento que estou recebendo de vós, que nenhum alimento falte nesta casa, que papai e mamãe consigam sustentar essa família trazendo comida e que a gente seja muito feliz, amém”.

De fato, a juventude da irmã em sua pureza havia desmedido algo no interior do irmão. Deu uma chance e passou a repetir as exatas palavras que a irmã proferia mentalmente antes de comer. “Senhor, abençoe este alimento que estou recebendo de vós, que nenhum alimento falte nesta casa, que papai e mamãe consigam sustentar essa família trazendo comida e que a gente seja muito feliz, amém” passou a ser um costume que cultivara e nunca se perguntara o porquê. O fazia antes de almoçar na casa das avós, de amigos, em restaurantes, sempre mentalmente, e arriscava um “pai, filho e espírito santo” tímido no fim. Não mudava as palavras, e começou a questionar algumas coisas. Como seus pais trariam felicidade e comida à casa dos amigos, dos avós? Como trariam bênçãos aos restaurantes, shopping centers, galerias e cafés da cidade? Por alguns momentos criou a imagem engraçada dos pais como super-heróis do cotidiano, bons samaritanos da humanidade em seus trenós multiplicadores de peixes e pães, fornecedores de bens perecíveis e não perecíveis a recintos trabalhadores da culinária.

Parou de questionar e deixou por assim mesmo. Parara de frequentar a igreja, experimentara centros espíritas, visitava debates de ateus, marcava presença em encontros budistas, passeava por igrejas protestantes, e se via em plenitude de dúvidas acreditando em tudo, acreditando parcialmente, acreditando em uma coisa e outra, e acreditando em nada. Passou a analisar a necessidade de tantos em afirmarem a certeza e legitimidade de suas crenças, fossem no tudo ou nada, fosse no pó pós vida ou na plenitude pós morte, e se viu tão afogado de dúvidas que as tomava como única coisa certa perante a incerteza de tudo.

Parou de questionar e deixou por assim mesmo. Parou de frequentar as brincadeiras coletivas de morto-vivo de sua infância. Parou com os estudos e o interesse voraz pela graça de cada religião. Mas não parou de evocar a força estranha que abençoava os alimentos de sua casa e de onde fosse, e dava de brinde o “muito feliz” que pedia de seus pais. “Senhor, abençoe este alimento que estou recebendo de vós, que nenhum alimento falte nesta casa, que papai e mamãe consigam sustentar essa família trazendo comida e que a gente seja muito feliz, amém”, e permanecia a imagem de sua irmã mais nova, com didática e cuidado impecáveis, muitos anos antes, repetindo palavra por palavra para que ele as memorizasse e fizesse da mesma forma. Com esta incerteza, não se preocupou.

E foi assim até os tempos mais remotos de sua vida, quando no leito de morte não podia mais responder pelo “vivo” evocado na brincadeira. De repente, a brincadeira respondia por seu monólogo pálido e infindo da horizontal que não permitia o ficar de pé. Entretanto, já depositara em seus embriões crescidos a serenidade duvidosa da comida abençoada e da alegria que poderia proporcionar para sempre, palavra por palavra, fosse pó ao vento, ser novo pelos prados e grandes cidades ou alma que dormia. “Senhor, abençoe este alimento que estou recebendo de vós, que nenhum alimento falte nesta casa, que papai e mamãe consigam sustentar essa família trazendo comida e que a gente seja muito feliz, amém”.

Perdeu a brincadeira e aceitou as dúvidas, mas enquanto estava de pé, viveu com a certeza da felicidade e da comida abençoada. E que não faltava, logicamente, pois papai e mamãe eram isentos de dúvida.

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À Procura

Gosto desse seu jeito
Esse que me olha, assim, por trás desses olhos grandes
Sem se intimidar…
Como se tivesse perdido algo
E por isso fica assim, a jogar essa luz de íris na pele de meu rosto
Procurando… E procurando…
E quando sorri, finalmente
Me parece sempre que achou o que procurava
E sorrio também, aliviado
E rio
E me perco
E me procuro também nos seus cílios que caem
E começo a rir
Quando me acho
E já é a vez de você se perder
E ficamos a rir para sempre, aliviados
Ou das caras que fazemos distraídos
Subtraídos, abstraídos
Ou apenas perdidos, e ficamos
Nesse acha e perde
E rimos
Sempre, o tempo todo
Sem saber, apenas crendo
Que é um sinal que a busca foi a seu fim
Mas a mantemos fictícia assim
Como se nada mais pudesse se encontrar
E o belo é que achamos
Sempre, algo que nos impulsiona
E nos faz, felizes, como se nada precisássemos
(E nada tivéssemos, pois nada achamos)
Procurar de novo algo naquele rosto perdido!

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O Primeiro Espetáculo

E depois de uma espera insuportável, eles foram. Decidiram arrebatar e desorganizar de vez a monotonia de seus dias, o que era apenas uma questão de tempo, que adiavam. Buscando-a o encontro se deu, como um susto. Em seu olhar aquático, em cerúleo, como no verde-mar estático dos lagos ela o encarou, olhando de baixo. Estava tímida. Mas ela conseguia sempre fixar os olhos nele, já ele não. Abaixava sempre a cabeça com um ar embaraçado e sorridente, sem mostrar os dentes, sem saber se preferia que o desconforto da timidez cessasse ou continuasse, sem a pressa de encontrar o desfecho. Como crianças andaram até a livraria e tatearam os livros, sem saber direito porque o faziam. “Ezra Pound, olha só! Preciso comprar um livro dele”, ele dizia, procurando disfarçar a coisa dura que era para ele se comunicar com a menina. Preferia por versinhos… E ela sorria novamente, e olhando-o, dizia que não conseguia olhar para ele. Em toda sua ironia amorosa partiram dali, e ainda como crianças, sentaram no banco de frente para o tapete vermelho. Nos rostos colados sentiram novamente a pele um do outro, em seu cheiro único que dispensava perfume, mas não se beijaram: ficaram ali, donos das mais profundas e infindas dimensões, a adiar novamente o devaneio em vida que era ter um ao outro, totalmente perdidos no par de olhos oposto… O movimento das bochechas denunciava sorrisos, logo eles, que estavam com as córneas cerradas, crendo na pureza daquele instante que se incrustava ali, na aura luminosa do ambiente, e fazia germinar alguma coisa que não ali encontraria seu terminar. Viviam a dúvida se o alcançar da tão almejada ventura seria como o processo de interrompê-la, tão próximos e tão distantes, mas por opção…

Chegara a hora e caminharam. Ela, com o vestido que ele adorava. Ele, sem saber o que ela achava de suas roupas… Mas certo de seu sucesso perante os gostos da moça! Como era bom crer naquilo tudo… Saber, na mais íntima e óbvia verdade, que seu mais simplório jeito de ser, de agir, de se espreguiçar e jogar os braços para o alto, a agradava simplesmente por serem seus… E isso bastava para se viver. Ela lembrava que estava diante dele, o menino que a atraíra, que a seduzira, para ser parte do filme louco que sua vida a ela propôs… Ela lembrava que estava diante dele, o homem que fora, ainda apenas que por instantes, toda poesia personificada nos parques verdejantes  que passara, pelas melancólicas e pequeninas estradas de Veneza, Florença e Budapeste. O homem e o menino que a ela intrigaram, em sua confusa perspectiva sonhadora e alta, como se fora de toda agrura da realidade. Que escrevera e eternizara, mistificando ainda mais em verso a vida… E a ele encantava a coisa linda e oculta que era isso, saber que no velho mundo entrara a poesia humilde que vinha de dentro dele mesmo…

Até que o beijo se fez, no encontro volitivo dos corpos, que desbravavam-se como se fosse a primeira vez, como se ali se instalasse o primeiro contato, a primeira troca de cheiros… Perante as imagens belas que traziam a emoção e a infância à tona, a pressão entre os lábios se fortalecia, no giro das cabeças, lento e suave, nas mãos nos cabelos, na nuca e na pausa, ah, a pausa que a tudo sucedia, e colocava de novo os olhos para enfim namorar, um ao outro, um a um, sem medo e preocupação, sem mágoa ou circunstância que pesasse, impedisse, se fortalecesse… A luta carinhosa dos dois era de um calor imensurável… Sentiram tremer as pernas, sacudir os braços nervosamente, bater os dentes e olhar desconfiados, os outros que assistiam o filme. Sentiam uma ânsia desconfortável, mas que satisfazia. Ficara a sala, em poucos instantes, tomada pela ardência da louca, louca paixão que avermelhava o recinto. Ali fazia de morada o tudo de mais belo e inocente que se resgatava daqueles corações tomados pela rotina, que procuravam o lazer, a calma, e viam-se como figurantes daquela história de amor que germinava… E não via seu fim.

Por meio das imagens belas do filme, choraram, como crianças de novo, só que mais do que nunca. A carga era intensa, atravessava o peito confiante, sabendo que encontrava ali sua morada, um abrigo suscetível à comoção, à compaixão, ao adeus de toda dor. Saíram, desnorteados, procurando a melhor rota, a melhor estrada, que os levasse até suas respectivas casas. Chovia. E no baque surdo e em espanto da consciência, pararam; ele a puxou, e de novo se beijaram, se beijaram, se beijaram, se beijaram… Como se nada mais ali houvesse. Em abraços, o primeiro espetáculo… Isento de qualquer dúvida, mágoa, ou nódoa expressiva. Quando menos perceberam, estavam os dois, presos à sua casa…

No turbilhão de lembranças, lembraram como tudo começou… Ao vê-la se deitar, teve certeza que não fora um momento perdido no tempo e no espaço das coisas. Toda fauna e flora alegre que eram, tão jovens, brotara dali, da semente linda que se concebera em sua inocência, pura e altiva, louvada e tema tocado pelas cítaras celestes, sem filtro… Que se transformava na aura reluzente da árvore que crescia nos dois, de fronte imponente, mas simples em sua candura, alva e harmônica, preenchida de frutos, com alguns que se apodrecem, alguns galhos que se quebram em sua fragilidade, algumas abelhas que vinham roubar o pólen e a seiva tão doce… Uma árvore suntuosa, que crescia e envelhecia cada vez mais em seus anéis e sua casca grossa e delicada. Uma árvore viva em suas cores em tons de verde, cheirosa em suas folhas e pura em seu orvalho matinal que os banhava por dentro, limpando-os, a cada dia… Uma árvore com seus nomes cravados na escultura, e a isso tudo se resumia, se mistificava, se entregava e, por fim, encontrava paz… A paz tão almejada dos amantes, que não se perde no tempo e no espaço das coisas.

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A paz está nas vertigens

“A acrobacia do topo sempre me fascinou. De baixo, somos todos aspirantes. Mas no alto, somos trapezistas. Arriscamos as pontas das pedras. Pisoteamos os galhos mais frágeis. Confiamos na força da natureza que nos empresta a calmaria do topo. Gosto do topo das coisas. A paz consigo mesmo está mais nas vertigens. Nos olhos que admiram a vista estonteante. A paz está nas alturas. Nas pequenas grutas. Nas flores pequeninas que soerguem das primeiras terras que se molham pela chuva. Nos pontos alcançáveis somente pelos olhos humanos. A paz está nos joelhos. Na musculatura que grita. Nas pontas dos dedos que congelam. Na dor que nao quer deixar de ser dor. Na superfície mais evidente da epiderme. A paz está no subir e no deslumbre do seu espectro que se expande. Está no prisma da vida que pulsa e se deixa, sem vergonha, exibir suas cores. O fascínio das cores só pode ser visto dos cumes. É apenas lá que os viajantes exaustos se olvidam de seus preconceitos e vícios. E podem observar do mais alto ângulo a dor e a felicidade de suas realidades distantes. Nao falo de liberdade, ou encontro pessoal. Mas de paz consigo mesmo. A paz dos acrobatas amadores.

Gosto do topo das coisas”.

Cusco, 2012

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O Guerreiro Inca

 

Caminha-te, Guerreiro
Toma-te o vento que o empurra
Como alimento, e ergue o corpo
No colosso bruto de tuas mãos
Porque cada passo é um passo a menos
E cada ida mata um partir

Cala-te, sob o falar da natureza
Que tua voz é estridente e imponente,
Forte e poderosa em magnitude
E é ouvida no subterrâneo dos mortos
Nos picos de Macchu e Huayna
E implode o gás azulado das estrelas
E faz laranja o verde-mar do céu

Mas fala-te, Guerreiro Inca
Ao abandonar a trouxa e dar bom dia
Que tua voz é doce como o voar do condor
E impera sobre os sons mais delicados
Fala-te, porque paira em ti um indígena
Que ruge e abruma todo espírito
Porque todo corpo tem cor de ouro muito viva
E cintila no reino apreensivo, pelos pedregulhos
E faz de morada todo o rútilo das esculturas

Caminha sem cansar-te
Fala sem morrer-te
Porque em ti mora uma civilização
Brutalmente viva e sobrevivente
Da crueldade do etnocentrismo

Ruge! como um touro
Que a comida do teu ventre
Alimentará o dia de hoje
Porque o tempo é implacável
E a vida é coisa pouca,
Mas a alma nao se rompe
E da cor das tuas rugas
E do odor de tuas lágrimas
E do espumar de tua boca
Ergueram-se as florestas
E os vales sagrados e profanos

Anda, que é outra tua biologia
Que teus pés nao sao como os outros pés
E teu sorrir desdentado é o mais sincero
Entre todos os sorrisos

Deita-te sob o preencher da lua
Caminha-te e purifica-te
Feito o cloro que aos rios alivia
Anda-te, guerreiro,
El dolor es pasajero!
E todo chao provém de ti
E toda fraqueza é um feto morto
Do teu ventre de cavalo marinho

Sob a lua cheia e as estrelas
Caminha que sao teus os caminhos
Caminha que sao tuas as orquídeas
Caminha, que a chuva
Nao maltrata teu dorso e a espádua
Que toda vida tua pulsa nas veias da testa
Caminha porque mora em teu sangue
O Quechua furioso dos sacrifícios
E todo politeísmo das Montanhas e do Sol

Caminha, Guerreiro Inca!
E perde teu medo de perder-se
Que és o cavaleiro de todo cerúleo
E todo verde arroxeado do anoitecer

Carrega em teu dorso as tendas
E toda dor de uma antiga civilizaçao
Carrega em teu ventre toda a alegria perdida
Pelos escombros obscuros das catacumbas
Por toda alameda de tuas rugas
Pelos bosques infindos das saboneteiras

Guerreiro Inca,
Leva toda lágrima chorada e sofrida
Por este povo de baixa estatura
E olhos de perdigueiro
Salve-os, Quechua!
Que a Mãe Terra te saúda
Em tua força
No gigantismo de tuas maos
Que esmaga todo desconforto das pedras
Em cada passo de ensaio do que já foi

Caminha! Porque o mundo é teu
E empurra-te o vento e os córregos às Ruínas
Que nunca alcançaram os espanhóis!
Que só conhecem a graça da tua vinda
Que nao é esporádica mas constante

As mesmas que anseiam por teu vir
E dissecam no intemperismo do teu partir!

Cusco, 2012

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Não chorarei mais por ti

Não chorarei mais por ti

Pois meu chorar é escandaloso e cada soluço dura menos de 1 segundo e ocorrem com uma frequência normal e regular de 5 a 25 vezes por minuto

E para chorar pisco excessivamente e uma piscadela de olho dura em média um 1/10 de segundo

E as lágrimas responsáveis pela lavagem e lubrificação dos olhos só começam a ser produzidas a partir dos 2 meses de idade e por ser um mero menino de alma faço 437 perguntas por dia e cansei de chorar a seco

E não esperarei por teu coração pois numa vida um ser humano já passa em média 8 anos em filas de espera

E o tempo é longo quando se está vivendo apaixonado sem resposta e a média de 70 batidas por minuto do coração e suas 37 milhões de vezes por ano me assombra porque estou bem acima

E algo me diz que devo dar mais valor aos 5 milhões de glóbulos vermelhos e 10 mil glóbulos brancos em cada gota do meu sangue

E também os 321.000 km de vasos que transportam o sangue por todo o meu corpo me fazem concluir que fui um peregrino do teu coração

E por falar de novo no intrometido o coração de uma pessoa com 75 anos já bateu mais de 2.737.500.000 de vezes e quero chegar nessa idade com os números padronizados

E já envelheci o suficiente ganhei rugas sangrei chorei suei por tua causa e em cada 2,54 cm de pele humana existem 19 milhões de células 60 pelos 90 glândulas sebáceas 5,79 metros de vasos sanguíneos 625 glândulas sudoríparas e 19 mil células nervosas e não quero mais me desperdiçar assim

Por isso não te beijarei sem pretexto pois segundo cientistas japoneses cada beijo diminui o tempo de vida em 3 minutos tal o esforço exigido ao coração

E estou com medo porque se dormirmos em média 8 horas por dia aos 40 anos teremos dormido 13 anos e eu já não durmo mais

E quero voltar a sonhar como sonhava antes de ti quero sonhar mais pois uma pessoa normal tem por volta de 1.460 sonhos por ano

E para chorar usa-se cerca 40 músculos

Para sorrir 17

Não chorarei mais por ti

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Eu parei no meio da rotina

Eu parei no meio da rotina para escrever.
Deixei de lado as obrigações, os deveres
Parei subitamente, como a flor
Que soergue do asfalto da monotonia.
Parei esperançoso, e esgotado
Aceitando a vida em seu mais honesto risco
Parei, porque tudo que preciso fazer
Tudo que me força, não me entende
Não quer negociar
Quer só me impor.
Parei e aqui estou…
O mundo está mais cheio e mais complexo
Do que nunca, e todos
Já escreveram sobre quase tudo.
Tenho pouco a dizer, então
A mensagem que fica
É a que parei, venci
A luta fácil de largar
O combate deleitoso de abrir mão
E ficará meu legado histórico
Citado nas aulas e convenções
De toda força minha que ferve
Na direção contrária.
Eu venci a guerra fingida
Do hipérbato do convencional
Com o impróprio ao momento

(porque a gente pensa que vai estudar
E trabalhar com o que quer
E a doce surpresa é ter que aceitar
E concordar
Com a velha corrente majoritária…)

Eu parei no meio da rotina
E fiz o germe da minha doutrina.

(e já passou da hora de voltar…)

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Quero banhar-me contigo

Quero banhar-me contigo na alegria
Na dor que venha a desabar
Na névoa líquida de desesperança
Que arrebata e traz a solidão,
Quero banhar-me contigo no desastre
Na pesca e no afogamento
E sentir a inundação de ter-te.

Quero banhar-me contigo no planejamento
Ao assistir a previsão do tempo
E caçar a chuva pelos bosques e ruas da cidade.
Quero dividir contigo um guarda-chuva…

Quero banhar-me contigo no Mar Tenebroso
Munido de sincera caravela
Por tuas curvas aquáticas temer cair no vácuo
Sentir as águas do descobrimento, e descobrir-te
Ou do Cabo das Tormentas, e ter esperança
Do Estreito de Magalhães, e circum-navegá-la
Por estas águas tuas impenetráveis até então
Pelos temerosos navegantes…

Quero banhar-me contigo no Mediterrâneo
Transpor as barreiras dos Otomanos
Reestabilizar o comércio e levá-la para jantar
E sentir o calor mediterrânico de teus lábios…

Quero banhar-me contigo no Mar Morto
E em todo sal purificar-te
E matar todos que por ti passaram
E matar todas que em meu corpo tocaram
E recomeçar…

Quero banhar-me contigo nos rios, lagos, e lagoas
Nas águas das mangueiras e torneiras
Nos fluidos corporais, nas águas do Carnaval
Nas que saíam dos teus olhos quando te feri
Quero descongelar os rios dos invernos
Quero as gotículas que ainda restam nos poços secos
Quero as águas dos rios impuros
Quero banhar-me contigo nas águas que evaporam
Nas águas dos moinhos e dos sertões…

Quero desaguar em ti…

Mas querer nada me traz
E sou um menino em uma quinta-feira chuvosa
Procurando nos lamentos da noite algo como teus fragmentos
Puxo um cigarro e misturo as línguas
Es très belle… eres tan hermosa…

Olhando pela janela, me banho comigo
Nos respingos do céu.

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Não aceitamos cartões

As mãos em concha eram para rezar ou para pedir. Quase sempre para pedir. As águas das palavras apressadas eram um gole rápido descendo pelo esôfago. Das mais calorosas e dos olhares compassivos, descia uma ilusão de catarata que purificava, mas era insuficiente na concretude. Tempo disponível tampouco enchia barriga. Uma boa conversa era mais bem vinda na quinta-feira depois do trabalho, de preferência com uma cerveja. Ali não. É preciso ser prático e rápido, porque a vida assume a faceta de ser breve, em honestidade. A imunidade é maior, mas o corpo padece.

As mãos em concha eram uma prece a pedir. Semelhantes na ditadura do terno e gravata não eram semelhantes. Eram mensageiros de um deus calado. A melhor música era o tilintar do metalismo mercantilista. Essa sim precedia o deleite do pão, do feijão, das contrações viscerais. Às vezes se come papelão. Os dentes caíam. Mas o riso desdentado promovia a conurbação. A força indígena e cigana saía das canas da serra, no dilúvio da embriaguez voluntária. Os pés incham e as unhas caem. Estão pretas. Mas o brindar acontece e une os homens que dormem. É força a alegria que afoga a diversidade, mas esta carrega um cilindro de oxigênio. É tristeza para uns, e é conforto para outros.

O morador de rua pede e recebe. Logo, deve ser feliz. Quantos pedidos dos moradores de casas, chácaras, sítios e apartamentos não são negados? Não se pode em 127 metros quadrados dar uma festa que ultrapasse a meia noite. Não se pode pedir o amor de Maria, se ela o recusa. Não se pode degustar o cigarro no ambiente fechado. Mas no terreno infindo e aberto dos meninos de rua sempre é hora para um jogo de bola. Ou quem sabe uma degustação de tipos de pão. Um festival de gaivotas de jornal. Todos com muitos gritos e exclamações de alegria.

O morador de rua pede e precisa receber. Os olhos de pena são dos deuses e dos pedintes. Surgiam teses por todo o mundo, com fundamento em sociólogos renomados. Surgiam estudos. Provérbios. Conselhos de mãe. Surgiam os autênticos, que ignoravam as influências e faziam o que achava mais correto. As teorias não acompanhavam os pedidos; estes são mais. Simultâneos na esquina da mercearia com o colégio militar. Constantes no largo onde sobrou um pedaço de trilho. Na outra esquina mais adiante.

O pedido, inevitavelmente, chega a nós. Na pressa de negar o troco do mercado a mente se reinventa, mas paga caro; mais ainda que se pagasse com as mãos.

“ Me desculpe, estou só com o cartão”.

No pão de cada dia era proibido sonhar. Os cabelos se coçavam em autoajuda. No asfalto em erupção era mais fácil não pensar. Perante as pernas apressadas não se deve, contudo, perder a formalidade. É preciso manter os olhos em grito uníssono e perfumado. E proferir:

“Aqui não aceitamos cartão, senhor”.

As mãos em concha querem a fartura do mar. Onde o sal lacrimoso é pago no débito e custa caro nadar.

Aqui é melhor pagar à vista.

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O Vigia

O vigia ama o que faz. Observa os cantos empoeirados da portaria e medita. Por cansaço, porém mais por respeito, não mata a barata que passa. É esta rainha, pois é notada; como são os artrópodes que caminham em suas vidas pequeninas, na solitude do piso frio. A cadeira suporta seus anseios, e na normalidade de sua força o empurra acima, contra o abismo dos ladrilhos. No respaldo de seu encosto o acalenta em inverso, na erudição de sua dureza e seu ninar bruto. “Não dorme, meu filho”, o diz, ainda que o faça querer o sono.

Toda vida definida e não descoberta ali quer ser outra. Querem dançar histericamente pelo salão os pés da cadeira. Querem as pernas dos percevejos seus cem metros rasos de direito. Querem as lâmpadas repousar suas câmaras de vidro…

Mas o vigia ama o que faz, e quer observar. Teme, mas sonha com a peripécia. Que venha o ladrão cara de pão! Ou o bandido de rosto aturdido! Que maravilha, seria o herói do dia! Quem sabe uma medalha, uma promoção… Em toda sua coragem em potência e perdida… Infatigável percorreria os cantos em seus devaneios remanescentes de caçador! Irredutível derrubaria um a um, a mirar feitiços em cada peito estupefato de susto!

“ Gosto de cebola e cheiro de alho, dou-te minha jornada de trabalho !”

E cairia cada batedor de carteira, lamentando o fim da vida de gatuno… Mas acabariam por amar o que fariam, ainda que na desventura do excesso semanal não pudessem dormir. Já com a mandíbula relaxada e os músculos labiais contraídos, percebia o espectro da fome. Sozinho, é da marmita o melhor cheiro. Ficou nas bordas do pote de plástico o perfume barato da esposa, e o olhar atento do filhinho. Sabe se lá, menino, o que seria! De longe vela o vigia pelo sono de quem ama. Momento algum lamenta não poder se juntar, contudo: o vigia ama o que faz, e sabe do medo dos monstros quando algum adulto está olhando. A luz dos olhos distantes é a luz da fresta da porta, que não incomoda o rosto, como almeja o sol detrás das cortinas.

O vigia sente a madrugada, e a ela é frágil; abre seus mais íntimos segredos à penumbra suspensa dos ares. Na névoa azulada pairam os sonhos dos que dormem, que breve se precipitam e caem no fosso do esquecimento. Não os do vigia, tão puros que flutuam sem massa, feito pluma na própria confissão e honestidade. O homem que sabe olhar, e não apenas ver, pressente a calma do sono profundo, mas não o aceita; pelas fotografias das pupilas estremece a paisagem, e absorve toda dor e alegria da colagem dinâmica que é viver. São as imagens súditas de sua coroa, preenchida de perdão em toda amplitude.

O vigia é um estudioso do olhar. Na extinção luminosa de suas retinas, quase se põe a dormir, mas luta; resiste e persiste, e abre os cílios em flor. A vida salpica e borboleta no arranjo de seus suspiros, que tiquetaqueiam na harmonia dos relógios. Ah, os relógios, os ditos intrometidos! Brincam cruelmente com a espera do aflito… Mas sabem pouco, que o homem que os olha não quer sair, ainda que da náusea do tédio emane a vontade de partir. Em sua missão, porém, é cúmplice do nascente, em todo seu leste, mesmo que seja norte, daqueles olhos sofridos.

O que o vigia tem, é que sabe, pela própria natureza, ver a felicidade, que é em centelhas mitigadas nas próprias ondulações.

O vigia ama o que faz, e a felicidade mora na aurora.

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